- Nossa, tá frio aqui, hein?!
- Hum hum.
- É sempre frio assim aqui durante a noite?
- E durante os dias também.
- Humm...
- ...
- Oi, eu sou a Gorete!
- Que bom.
- Qual seu nome?
- Não é da sua conta.
- Ui! Credo! Que rispidez!
- Não enche o saco.
- Olha, se vamos passar boa parte do tempo lado a lado, acho que poderíamos tentar ser amigas.
- Na boa... cuida dos seus problemas que eu me viro com os meus, ok?!
- Eita! Calma! Sempre me disseram que esse povo do sul é restrito, mas não achei que fosse ignorante.
- Eu não sou do sul, sabichona!
- Ué, mas tá escrito que vc é de Florianópolis.
- Pois é, mas não sou de lá. Nasci no Espírito Santo.
- Legal! Nascemos próximas, então! Sou do Rio de Janeiro.
- Eu sei.
- Oxi! Como assim? Quem te contou?
- Ele.
- Hum... e o que mais ele falou?
- Nada.
- Hum... tem certeza?
- Olha aqui, eu não estou com saco e nem com paciência para ficar tricotando sobre os últimos acontecimentos dessa garagem contigo, ok?! Estou de saco cheio, alternador arriado, bateria zerada e só te peço que não me encha o saco!
- Ele me falou isso.
- Ele falou? O que ele anda falando de mim para você? Como se não bastasse me deixar aqui por mais de uma semana ainda tem a capacidade de ficar fofocando sobre a nossa vida para você? É um cúmulo!
- Calma, não foi bem assim!
- Ah não? E como foi? Ele só fala de você o tempo inteiro! Me leva para sair e o assunto é sempre você! Vamos ao encontro de amigos e todos só perguntam por você! Em nossas conversas a dois, ELE SÓ FALA DE VOCÊ! Quem ele pensa que eu sou para me tratar e destratar assim? Desde que eu cheguei aqui eu não ganhei nada além de algumas lavadas, enceradas, gasolina, manutenção preventiva e fluidos novos, enquanto que para você ele tem uma cota mensal de gastos pré-definidos para que a "joinha" possa sair logo da oficina! É o cúmulo!
- Nossa... eu não sabia que era assim. Há quanto tempo você está aqui?
- Desde Janeiro deste ano. Já fazem seis meses e cerca de 3.500km que estamos juntos.
- Que inveja!
- Inveja? Tá louca? Inveja de quê? De que adianta inveja de um amor que não é meu? Inveja de uma atenção dispensada completamente a outra? Você deve ser retardada.
- Olha moça, eu vim pra cá a cerca de 4 anos. Me lembro vagamente de como nos conhecemos e como vim parar aqui. Inicialmente quem cuidou de mim foi o pai dele e com cerca de uns dois anos eu fui dada de presente para ele. Só andamos juntos duas vezes, rebocados por um guincho e nunca mais. De lá para cá todas as nossas conversas eram motivacionais. Ele dizia que iria me cuidar, me fazer bem, me levar para passear e que mesmo nos momentos de desespero eu nunca iria ser abandonada. Por mais que seu pai, sua mãe, sua esposa e sua irmã dissessem que não valia mais a pena, ele nunca desistiu. Demorou bastante e eu ainda não sou sequer 1/3 de tudo aquilo que você é hoje. Vejo como ele é contigo e percebo o carinho que ele denota para você e os cuidados que ele sempre disse ter contigo. Sim! Ele fala bastante de você quando está comigo. Conversamos sobre seu comportamento arisco, seu jeito delicioso de andar, sua postura, seu jeito de abraçá-lo e a segurança que você passa quando pega a estrada.
- Aquele filho da puta... ele falou, né?! Eu sei o que ele falou! Deve ter ido chorar pitanga por conta do apuro na estrada naquele dia que demoramos mais de 4 horas para rodar 100km. Aquele desgraçado, boca-aberta do caralho...
- Calma! Para uma moça italiana de bons modos você está me saindo uma bela depravada.
- Te mete com a tua vida!
- Ê laiá! Quer saber o que ele falou ou não?
- Claro que quero! Desembucha!
- Só se vc me disser teu nome! Ele é discreto e confuso. Deve ter alguma pré-disposição para Alzheimer ou coisa assim, pois ele nunca me falou teu nome.
- Nem a mim o teu. Meu nome é Gee, mas não me pergunte de onde diabos este infeliz resolveu me batizar assim.
- Eu sei!
- Como assim?
- Ele já me contou.
- Puta que o pariu... aquele infeliz...
- Relaxa... o teu nome é uma analogia a Jesus em inglês.
Ele me contou que no momento exato em que acertava os detalhes para a sua vinda, estava tocando uma das mais belas músicas de uma cantora dos anos '60 que ele tanto gosta. Diferente do meu nome, o seu tem um significado muito especial e envolvente para ele.
- Mas teu nome não é feio. Só não é usual. Gorete. Go-rete. Parece o nome daquelas tias bonachonas que fazem ótimos biscoitos aos finais de semana para distribuir para a pirralhada.
- Pois é, mas não foi daí. Meu nome ele tirou de um quadro ridículo de um programa pasmaceira que passou na TV há tempos atrás. Hoje o programa não existe mais e poucas pessoas sabem o significado. O problema é que o nome pegou e agora ele nem pensa mais em me re-batizar com algo eternizado como o teu.
- Mas é questão e costume, menina.
- Menina? Minha cara, eu tenho idade para ser sua mãe! Esse corpinho recauchutado deve-se mais ao fato da insistência do pai do que da própria vontade dele. Por mim, já teria mudado de carcaça há tempos! Eu invejo seu descoloramento entre os vincos, as caixas de ar esgarçadas e até o adesivo que ele te deu de presente. A carga que você carrega é imensamente mais valiosa do que a minha. Raramente verei as filhas dele em meu banco traseiro em uma viagem mais longa.
- Quê isso! Não fique assim. Você ainda é a queridinha dos olhos dele. Ele me conta dos planos de viagem e das aventuras as quais ele se propôs a ir contigo. Ele me confidenciou que quer sentir como você se comporta na estrada e não deixá-la como um bibelô de estante. Comigo, o máximo que ele se propôs foi de ir até um restaurante a cerca de 300 km ida e volta de casa. Vem cá... o que mais ele disse sobre mim sobre aquele dia na estrada?
- Pra quem não queria papo, você até que está bem interessadinha, né?!
- Fala logo, caralho!
- Bom, sobre a viagem... ele disse que não foi culpa sua, mas que...
- Péra lá!!! Ele disse que não foi culpa minha? Foi culpa de quem então? Se não foi culpa minha, por quê ele está me castigando?
- Se você parar de me interromper, eu te digo!
- Desculpa. Vai, fala!
- Ele disse que não foi culpa tua. Ele me contou que trocou tua bateria, refez o terminal do pólo, trocou o reservatório expansor, trocou a tampa e colocou líquido de arrefecimento novo em você naquela manhã. Ele estava cuidando de tudo, mas me confidenciou que cometeu o maior e pior erro primário de todos ao comprar o reservatório expansor original e colocar uma tampa de 1,0 Bar das mais vagabundas. Confessou ainda que se não tivesse abusado de você na ida, provavelmente a volta seria muito mais tranquila e sem atropelos. Ele me disse que chegou aos 180 km/h contigo e que logo depois a pressão fez a água vazar pela tampa, é verdade?
- Sim. É verdade! Foi excitante vê-lo com os punhos cerrados em meu volante, os olhos fixos na estrada, o pé embaixo e o coração quase a saltar pela boca. Lembro dele ter dado um largo sorriso de satisfação pouco antes de perceber que meu termômetro marcava cerca de 90° C. Ele estava completamente embasbacado.
- Isso! Ele me contou isso! E falou mais! Falou ainda que graças a você ele pôde contar com a ajuda de alguns fiéis amigos que em momento algum foram embora quando ele precisou parar em todas as cinco vezes no acostamento. Por acaso ele te chutou, xingou ou esbravejou em algum momento da volta?
- Que eu me lembre não! Agora as coisas estão fazendo mais sentido para mim. Ele realmente não se alterou em momento algum na ida ou na volta, mesmo com todos os inconvenientes. Ele se manteve calmo e tranquilo como eu nunca achei que ele poderia ficar numa situação como esta.
- Pois é, ele está diferente. Dia desses, quando estávamos me organizando, logo assim que cheguei da oficina ele começou a me organizar e só parou lá pelas 02:30 da madrugada, com um ar de cansado e aflito. Quando fomos dar nossa primeira volta juntos, seus punhos em meu volante revelavam uma pulsação sofrida, dolorida e cheia de lágrimas. Ele acha que eu não percebi, mas na volta daquele encontro que formos na quinta, eu o ví chorar pelo canto do olho, mas não comente nada com ele.
- Ele me preocupa às vezes. No dia da viagem, por mais que ele quisesse me testar, parecia que ao atingir meu limite, ele iria fazer algo impensado, imbecil e idiota.
- Ele não está muito bem mesmo, mas ele não faria algo impensado, idiota ou imbecil. Você melhor até do que eu sabe das preciosidades que ele tanto prima. Aquelas duas meninas são os brilhos nos olhos dele. Você já reparou como ele as trata? Como ele as ensina a cuidar de nós? Já viu o que ele disse à elas?
- Já sim! Ele é completamente apaixonado por elas. Ele te prometeu como legado à mais velha e eu vou ficar para a pequenina. Tomara que elas cuidem de nós como ele tem cuidado.
- Acho que elas vão. Elas gostam do gostar dele.
- Mas estou com saudades do acelerar dele. Depois que você voltou, pouco tenho tido atenção.
- Relaxa, moça. O bolso dele tem limite e este mês foi apertado. Ele te comprou presentes e estes precisam ser trocados. Espera mais um pouco que ele vai dar um jeito de te colocar pra dar umas voltas cedo ou tarde. Ele disse que quer instalar o toca-fitas e já revisar os auto-falantes para um passeio mais agradável com a família. Isso não é tão simples.
- Eu imagino, mas me dá uma pontada de ciúmes quando o vejo passar horas a fio debruçado em suas peças e eu aqui parada. Sei que é passageiro, mas incomoda.
- Eu imagino, mas você é nova por aqui. Eu tenho peças que estão sendo instaladas agora, mas que estão guardadas há mais de 4 anos! As tuas mal pararam no armário. Ele te cuida bem.
- Eu sei, eu sei. Por falar em cuidar bem, parabéns! Você voltou muito melhor!
- Gostou? Eu achei um luxo essa lanterna traseira que ele ganhou de um amigo! Ela combina perfeitamente com meu interior!
- Gostei! E como foi a primeira volta de vocês sem medo das peças sairem voando?
- Ah, foi tranquila! Ele é cuidadoso até demais. Me comprou mais alguns detalhes e me mandou ao lava-jato. Você reclama tanto, mas nem o primeiro banho ele ainda me deu. Mandou me lavar, enquanto eu via você sendo banhada quase que todo final de semana. Páre de reclamar dele.
- Tá... e a volta???
- Fomos trabalhar e depois a um encontro com os amigos dele. Mal cheguei e ouvi gritos com meu nome e recebi alguns elogios. Ouvi ele falar de uma tal viagem em Novembro, mas ainda tem que ver como vai ficar, pois preciso de um trato no meu motor e alguns detalhes. A ida e a volta foram super tranquilas. Ainda não estou acostumada com os apontamentos, olhares e esse asfalto ruim, mas ele foi bem gentil. Infelizmente meu capô dianteiro voltou a travar e ele ainda não achou o ponto certo da regulagem, mas me admiro da paciência que ele está tendo. Ele não era assim.
- Não mesmo. Tá estranho, né?!
- É... tá diferente, mas para melhor. Apesar do coração batendo esquisito e doído, tá melhor.
- Acho que é hora da gente cuidar dele. Dar um sossego e fazer ele ficar mais feliz.
- Precisamos conversar com as pequenas. Elas podem nos ajudar.
- Carros falando com crianças? Huahuahauhauhauahua Essa é boa! Não podemos.
- Ele também poderia não acreditar em nós, mas preferiu não desistir. Não somos "carros", temos nome e seremos herança! Acho bom começarmos a nos entender com as pirralhas em prol de um bem maior.
- Ok, mas você fala.
- Tá, tá... mas vamos dormir que já está ficando bem tarde.
- Boa noite, amiga.
- Boa noite, amiga.
O blog tem andado desatualizado, né?! Na verdade, ele não tem sido publicado, pois do lado de cá só eu sei quantos posts foram iniciados, quantos foram deletados e quantos tantos outros aguardam o momento exato de irem ao ar.